Uma carta ao futuro

 

Este texto surge porque há umas horas recebi um email para participar num concurso de escrita da minha terra. Pensei em antes de ir dormir escrever algo sobre o tema: "Uma carta ao futuro". Mas algo que não só me dê um prazer enorme escrever como algo que seja demasiado estilisticamente desviado do resto das outras participações que vão receber para ser sequer considerado no concurso. Ando a ler "A Queda" de Albert Camus e por isso decidi escrever nesse estilo. Pareceu-me suficientemente interessante e provocador.

Não me importa ganhar o concurso nem tão pouco dizer-lhes que escrevi o texto num par de horas e o publiquei num blog meses antes de o entregar (as entregas são só em fevereiro). Interessa-me sim escrever algo que me desafie e que lhes abra um bocadinho os horizontes.


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Quero uma tosta mista e um sumo de laranja, por favor. Mas não barre muita manteiga que o médico já não me pode ver com problemas de colesterol. Na verdade eu como este mundo e o outro sempre que me apetece, você não? Que desperdício de apetite.


Diga-me lá se se preocuparia minimamente com o que vem a seguir se isso implicasse sacrificar o agora. Valente merda de maneira de viver. Desculpe a ousadia mas fico exaltado quando me pedem para cortar na manteiga. Porque é que anda tudo apavorado de um tal monstro que aí vem se continuarmos a comer quantidades exorbitantes de gordura? Eu, muito honestamente, prefiro aproveitar tudo o que posso quando posso. Vou acabar enterrado tão fundo como aqueles que me avisam dos perigos da gula. Mas bem, muito obrigado pela tosta e o sumo, têm ótimo aspeto. Não a maço mais, vou sentar-me ali na mesa do fundo com a minha mulher.


Tens a certeza que não queres comer nada, Carla? Se continuas assim vais desaparecer. Para o excesso de uns, a falta de outros. Estava ainda agora a falar ali com a empregada sobre como acho descabidos os pedidos do Doutor Jaime de que corte na manteiga para viver mais meia dúzia de anos. E ele que sabe perfeitamente o quão bem me sinto a comer tudo aquilo que me faz mal! Tu que tens toda a atenção do mundo ao que comes, vais ganhar o quê com isso? Mais uns dias caquética na poltrona lá de casa? Sim, porque não penses que é com sacrifícios mundanos que se revertem as rodas do tempo. Tu vais estar tão fundo como eu e o Doutor Jaime, só que eu levo memórias de puro hedonismo que me enchem o coração e as veias, o Doutor Jaime provavelmente leva uma trombose de tanto se preocupar com a vida alheia, e tu levas o arrependimento de não teres comido aquele mil-folhas que está ali na vitrine. O teu bolo preferido! E não me venhas com histórias hipotéticas sobre teres mais tempo com os nossos netos que nem sabes se a Ana quer ter filhos.


Estás a ver? Acabei de comer uma tosta mista, um dos lanches que remonta à minha infância, e em vez de sentir a felicidade daquele puto que ficava com manteiga a escorrer pelas bochechas estou aqui a palrar sobre como ir contra as minhas vontades talvez me seja benéfico um dia destes. Disse-o ali à senhora do café e digo-te a ti também: Valente merda. Terias tu coragem de dizer ao pequeno Carlos que não podia chegar da escola e passar aquela meia hora na cozinha com a avó de volta de ingredientes pouco saudáveis? Só de pensar que se na altura fosse acompanhado pelo Doutor Jaime tinha trocado essas memórias por dez quilos a menos dá-me arrepios. Aqueles que muito se preocupam com o que vem a seguir são tal qual os bêbedos: tendem a não formar memórias. Uns ignoram o presente com o néctar dos Deuses, outros com ideais tendenciosos. Pelo menos o néctar existe, porra!


Mas bem, vamos lá andando antes que se tranque a chover. Estás a ver aquele miúdo bem vestido e penteado com uma mochila de marca e cara de quem odeia o que faz? Aposto que é filho de um gajo obcecado com o futuro como o Doutor Jaime que o trata como seu protégé e o convenceu a estudar ali na universidade de medicina ao cimo da rua na esperança de que cinco anos de agonia, ou lá quantos se estuda em medicina, se convertam numa gloriosa vida depois dos trinta cheia de futilidades e status social. Consigo ver deste lado da rua que o puto está deprimido, mas isso não importa, porque tal como os Nazis, os Cientistas, os Cristãos, ou os grandes Capitalistas, o corpo daquele pobre coitado é movido pela possibilidade daquilo que ainda virá. E isso dá montes de jeito, sabes? É bom que as pessoas possam ser tão firmemente movidas por aquilo que não existe porque dá uma oportunidade exímia aos governos, televisões, internautas, e tantos outros modeladores do tecido social de fazerem o que quer e bem lhes apetece. Só me entristece que aquele miúdo nunca vá saber o que perdeu. Se eu tivesse dez quilos a menos também não ia sentir falta das conversas com a minha avó debruçado sobre um pedaço de toucinho. Não se pode desejar algo que não se conhece.


Nestas caminhadas até casa dá para ver muita coisa. Especialmente invejosos que olham para mim, que tenho colesterol, como um sortudo porque como tudo quanto quero. A culpa da troca de memórias por otimizações hipotéticas destas pessoas não é minha, mas sim da sua falta de coragem ou, continuando no tema da comida, da sua falta de tomates. E não penses, Carla, que os estou a julgar! Para se ter coragem é preciso acreditar em algo. É preciso ser movido pelas tais coisas que não existem. A diferença é que eu escolhi acreditar que o colesterol era preferível ao sacrifício constante, e eles, à falta de alguma vez terem tido um pensamento original, escolheram acreditar em todos os Doutores Jaimes que lhe passaram pela vida. É precisamente essa sensação de que nunca foram guiados senão pela cabeça dos Doutores que os corrói por dentro e se reflete em inveja, ódio até, por aqueles que tiveram a ousadia de escolher outro caminho.


Aqueles miúdos ali no parque infantil não podiam querer saber menos do que vai acontecer a seguir. Quando crescemos somos empurrados pelas forças deste mundo e do outro para para um caminho neurótico de antecipação constante. Os poucos que se escapam preferem guardar rebanhos a viver entre psicopatas.



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Sff não façam interpretações animalescas sobre aquilo que escrevo. Perguntem-me enquanto estiver vivo. Se Pessoa ouvisse as coisas que foram ditas nas minhas aulas de Portugês, contorcia-se todo.


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